JOSÉ JORGE LETRIA, “CANTA” ABRIL NUM BELÍSSIMO POEMA QUE ESCREVEU E DECLAMOU
Para melhor compreendermos o alcance das palavras, que foram escritas por José Jorge Letria, no belíssimo poema - O DIA EM QUE OS CAPITÃES FIZERAM PORTUGAL FELIZ, seguidamente voltamos a publicar o video com a declamação do poeta e simultaneamente, o texto do respetivo poema, que ele tão bem “pintou”.
VÍDEO
O DIA EM QUE OS CAPITÃES FIZERAM PORTUGAL FELIZ
Foi uma noite larga como um rio,
tão larga como o coração de um povo
ou o voo de um albatroz sobre o sono das ilhas.
Foi uma noite a desaguar numa foz de pétalas
onde todas as vozes se juntaram, altivo coro,
para dizer que nunca é tarde para a felicidade
sentar à nossa mesa a herança de luz
que a torna tão desejada, doce e rara.
Até o silêncio se fardou de capitão
para abrir a porta de armas a um cântico
vindo do ventre fértil desta pátria
com uma arca de palavras nascidas da lavra
do nosso amor a tudo o que nasce valente e livre.
Que idade tínhamos nessa madrugada
que tudo prometia ser, deixando o medo refém
de uma vida inteira de servidão e vénia ?
Tínhamos a idade dos filhos que já tínhamos
e dos que vinham a caminho, sem mácula,
para que nunca mais se fechassem as portas
que a coragem abrira à bênção do vento e do riso.
Que idade tínhamos nós nessa noite,
mãe de todas as noites que as feridas da guerra e do exílio
cobriram com os panos ásperos do sal das lágrimas ?
Tínhamos a idade de ser irmãos daqueles a quem,
com a bravura das ondas, chamámos camaradas,
na fraternidade de sangue que aduba os canteiros da paz.
Que idade tínhamos nós nessas horas tecidas
com o fio da incerteza que sufoca, que engrandece ?
Passaram quarenta anos, tantos anos, por nós,
pelos retratos, pela gaveta funda das lembranças,
pelos olhos das mulheres e dos filhos, dos amigos
que o tempo teimou em levar, traiçoeiro e sem aviso,
só para nos castigar com o fel da imerecida ausência
como se houvesse um preço a pagar
por termos conseguido tornar, em Abril, Portugal feliz.
Passaram tantos anos pelas páginas do livro
que, por amor, escrevemos, enamorados
de uma ideia, de um sonho, de uma maré indomável,
porque éramos jovens e queríamos que a juventude
não morresse no mato das ilusões desfeitas.
Passaram tantos anos sobre as cicatrizes
do chicote, da tortura, da ameaça, da injúria
e nós permanecemos de pé, na reserva da tropa
mas não na reserva deste pacto selado com o futuro.
E mesmo cansados, nunca fomos tão jovens como hoje
para proclamar, guerreiros da colheita adiada,
que nos podem tirar quase tudo, menos o direito
de, livres, dizermos que Portugal não se rende,
desde Alcáçovas ao Largo do Carmo,
desde o Terreiro do Paço às celas abertas de Caxias.
E esses foram, que ninguém o esqueça,
os dias únicos da glória de Portugal,
notícia que nos devolveu o fulgor e a magia
após tantos anos de dorso vergado
nessa feira cabisbaixa de que falava o O'Neill
e que reclamava o Portugal futuro do poema de Ruy Belo.
Já passaram tantos anos e tão poucos,
já fomos tantos e tão poucos, mas cada vez
seremos mais, entrincheirados no quartel desta memória
que renasce connosco sempre que dela fazemos estandarte
desfraldado ao vento daquilo que ainda nos falta viver.
E que ninguém se atreva a dizer-nos
que a História, afinal, ficou por cumprir.
Militares e civis, fomos nós que a escrevemos
com as letras de seiva, sangue e espuma
com que se escreve tudo aquilo que conta,
tudo aquilo que fica, tudo aquilo que resiste.
Já passaram tantos anos, mas foi ainda ontem,
no manso clarear da madrugada, que mudámos
o destino de uma terra e de um povo,
como se disséssemos: "Todo o poder que queremos
é a liberdade e a alegria de uma pátria livre. Nada mais".
No livro desta história está um capítulo em falta
e há-de ser escrito por quem não esquece nem desiste.
E que ninguém apague a luz enquanto houver lá fora
gente à espera dos muitos nomes, vozes e rostos
que este nosso Abril ainda um dia há-de ter.
ABRIL 2014
(Do livro inédito Zeca Afonso e Outros Poemas para Lembrar Abril)